sábado, junho 26, 2010

Um dia Normal

    Eu era apenas um menino, mas lembro daquele dia. E lembro com detalhes. Devia ter uns 7 anos. Nascido naquele engenho. Cativo desde moleque. Menino que era, nem pensava muito nessas coisas.
    Naquele dia eu estava brincando com Nhôzinho, gostava de brincar com ele. Só tinham duas brincadeiras que eu detestava: Uma era cavalgar, pois sempre me fazia de cavalo. E a outra, era só quando os primos dele iam passar uns dias lá no engenho. Brincávamos de Capitão-do-Mato. Eu me escondia no meio do canavial e eles vinham me caçar. E por serem os capitães-do-mato, batiam em mim quando me achavam. Toda vez a brincadeira acabava comigo no tronco.
    Por volta das 11 horas, eu fui para a cozinha. Era lá que a mãe trabalhava. Eu ajudava a pôr a mesa. Sentia até orgulho em fazer aquilo. Era um sentimento que tomava conta de mim. Era o orgulho de ajudar a minha mãe. Lembro que ela sorria pra mim e me dava um cheiro. A minha mãe morreu naquela cozinha. Trabalhava nela bem antes do meu nascimento. Meu pai era o escravo reprodutor do engenho, já estava velho quando eu nasci. Morreu quando eu tinha uns dois anos. Não me lembro dele.
    Ah! Aquele dia 13 de Maio de 1888. Um dia normal para mim. E como aquele dia, muitos outros iguais vieram. A rotina no engenho continuou a mesma. O trabalho na cozinha era o de sempre. Vez ou outra, um negro ainda era açoitado pelo capataz.
    Foi há 40 anos que a tal Princesa aboliu a escravidão. Mas o desprezo pela nossa gente, isso ela não aboliu, não. Eu mesmo nunca fui livre. Sei nem o que é. Sempre vivi obedecendo às ordens dos brancos. Até agora.
    Pensando bem, me sinto livre por um momento: Na roda de capoeira. Ali, no meio daquela roda, gingando, cantando, eu me sentia dono de mim. Esquecia o engenho, esquecia o trabalho na cozinha, esquecia o sinhô... Embora muitos dissessem que os negros não têm alma, eu nunca acreditei nisso. Ali na capoeira eu era livre. E ninguém podia tirar isso de mim.
    Como disse Jesus, que é sinhô dos pretos também: “Tenham medo dos que podem matar a alma e não o corpo”. Isso eu nunca temi. Meu corpo carrega cicatrizes. Marcas que são vistas, mas que não atingiram minha alma. Ela continua negra. Negra como uma noite africana, terra dos meus acentrais.

3 comentários:

  1. Muitooo bom!!!

    Nem parece o Thiago q eu conheço... rsrsrs

    Parabéns jovem talento!!!

    ResponderExcluir
  2. Interessante! Também sinto a mesma coisa: sinto que a cor negra representa O BEM MAIOR, O BEM SUPREMO. As piores atrocidades humanas foram feitas por etnias brancas; ainda bem que acreditamos na VERDADE DAS ALMAS NEGRAS... Que nós, ALMAS NEGRAS, possamos INFLUENCIAR MAIS E MAIS esse insensível MUNDO BRANCO...

    ResponderExcluir
  3. Só discordo um pouco disso que vc falou "sinto que a cor negra representa O BEM MAIOR, O BEM SUPREMO". Não acho q há a interferencia da cor nisso...mas podemos influenciar sim o insensível mundo tanto branco...como preto...desde que essas bobagens acabem e todos se identifiquem como humanos...Valeu meu querido...Obg por expressar a sua ótica. Vc é muito bem vindo.

    ResponderExcluir